A questão do preconceito, da discriminação e do racismo numa dimensão crítica

17/11/2008 15:01

 

Otaviano Afonso Pereira  
 

Introdução

O Racismo no Brasil se apresenta com um dos grandes desafios a serem superados pela população negra, já que esta condição, acrescida da distribuição injusta da riqueza e dos inúmeros benefícios gerados pela política econômica à classe dominante, notadamente "branca", relega a grande maioria negra a condições extremamente precárias de sobrevivência.

Acredita-se que a luta política pela igualdade entre negros e "brancos" não está desconectada da luta pelo fim de uma sociedade que tende a homogeneizar culturas, hierarquizar e coisificar as relações entre as pessoas que, em última instância, estão condenadas a serem reduzidas simultaneamente a consumidores e mercadorias. Assim sendo, para que homens e mulheres sejam humanamente  emancipados-já que a emancipação política já ocorreu e tenham todos as mesmas condições de desenvolver suas potencialidades, uma autêntica individualidade, se faz necessário, antes de tudo, repensar radicalmente este modelo de organização da vida econômica social e política.

Nesta análise parte-se do pressuposto de que a esfera da luta política  é expressão direta do modelo econômico adotado, sendo impossível alterar àquela significativamente de uma maioria subjugada, independentemente da cor da pele e do gênero, sem que o campo da reprodução da vida, ou seja, a estrutura econômica e produtiva seja alterada em profundidade.

Desta forma, ao pensar na luta pela promoção da igualdade entre os seres humanos, e aqui especificamente entre negros e "brancos", que tenham como principal parceiro o Estado burguês na luta contra a discriminação, deve-se levar em consideração que nenhuma medida estatal será tomada contrariamente à  reprodução dessa lógica que se fundamenta pela exploração, dominação e acumulação de capital em escala planetária. Ou seja, esperar que o Estado nacional, por meio de medidas legais elimine de fato as injustiças e discriminações sociais, principalmente àquelas ao acesso a postos de trabalho, é no mínimo ingenuidade tendo em vista a natureza capitalista do Estado.

Ao ser incomodado por um movimento social organizado, mesmo  que desarticulado regionalmente ou nacionalmente como o movimento negro, mas que de alguma forma consegue dar visibilidade aos graves problemas dessa população, que com base na Constituição Federal deveriam, mas não são tratados como cidadãos o Estado lhes dá algumas concessões que permite, em última instância, uma certa tranqüilidade a efetivação do projeto político neoliberal.

Estas concessões favorecem este ou aquele grupo social, mas não altera em definitivo a sua condição, pois nada pode interferir negativamente nos interesses da classe dominante e no seu projeto de acumulação. Estas medidas, como as ações afirmativas, a discriminação positiva em prol dos negros, que em muitos casos são tratadas como soluções para os problemas das "minorias", serão sempre paliativas, expressão de uma "vontade política" que jamais deve ser efetivada em sua totalidade.

Em se tratando do racismo no Brasil, são utilizados todos os tipos de argumentos que dizem respeito à habilidade, capacidade intelectual, formação, etc.,para legitimar a não inserção do negro em ocupações qualificadas no mercado de trabalho.A ausência incontestável da população negra nos postos de trabalho mais qualificados e, por tanto,nas classes de nível econômico mais elevado, e a divulgação destas informações através da mídia, a academia e ao governo a emergência moral, mesmo que superficial, de promover propostas que visem em longo prazo "a promoção da igualdade" nacional. No entanto, não deixam de ser ações imediatamente realizáveis, escolhas possíveis no interior das restritas alternativas socialmente criadas.

Desenvolvimento

Vimos através desta introdução, vários ângulos das medidas adotadas pelo Estado burguês, cuja intencionalidade é manter o processo de discriminação e estratificação do elemento negro dentro da sociedade brasileira capitalista e neoliberal. Agora, veremos outros ângulos de como se dá esse processo de marginalização do negro, no contexto de sua vivência social. (MARTINEZ, 1999).

Assim, quando tomamos consciência dos direitos humanos e da cidadania somos obrigados a reconhecer que eles ainda são extremamente desrespeitados, quando não ignorados. Basta olhar a nossa volta para perceber que não vivemos uma situação em que a igualdade, a liberdade, as oportunidades existem da mesma forma para todos.

Muitos são os crimes cometidos contra a cidadania, e os piores e mais graves deles são: o preconceito; a discriminação; o racismo; a violência; as desigualdades sociais; a violência; a falta de acesso ao conhecimento e a informação; a corrupção; a impunidade; a indiferença e a falta de ação perante a própria existência desses crimes (BENTO, 1999).

E aí, eu pergunto: o que é na realidade o "Preconceito"? É uma opinião, uma idéia negativa sobre uma pessoa ou um grupo de pessoas, que se forma e se desenvolve mesmo antes de se conhecer os fatos e as razões do outro lado. Ou seja, é feito um julgamento antecipado, geralmente baseado no fato daquela pessoa ou grupo serem diferentes de quem sente o preconceito. Essas possíveis diferenças vão justificar que um grupo se sinta superior ao outro e se julgue com mais direitos e privilégios.

O preconceito racial, por exemplo, teve origem em idéias desenvolvidas principalmente na Europa, que considerava uma raça superior à outra com base em diferenças físicas, como cor da pele, formato do nariz, cabelo, tamanho do crânio.

Segundo essas idéias, as pessoas de pele alva (os brancos) seriam da raça superior, mais inteligentes, de melhor caráter, mais preparados para comandar. E as pessoas de pele escura  (os negros  e outros povos não europeus) seriam da raça inferior, menos inteligentes, com menos valor moral e nascidos para obedecer (MARTINS, 1997).

Porém, os cientistas já provaram que não há qualquer fundamento sério nessas opiniões, pois as diferenças entre os grupos humanos são devidas a condições geográficas, de clima, de cultura.

A cor da pele, por exemplo, é determinada pela maior ou menor presença de um pigmento chamado melanina, que existe em todos os seres humanos. Nas regiões onde os raios do sol são mais fortes, a melanina se desenvolve mais e a pele fica mais escura, caracterizando um grupo humano e seus descendentes. Portanto, a cor da pele não tem nenhuma influência no grau de inteligência ou no caráter das pessoas.

Da mesma forma, os estudiosos sobre o assunto concluíram que todos os homens pertencem à mesma espécie humana. Existe apenas uma raça, a "raça humana". Não é possível a partir de traços físicos, dividir a espécie humana em várias raças. Existem vários grupos dentro da espécie humana e cada um vai criar sua própria cultura, sua linguagem, seus costumes.

Diante do exposto, perguntamos mais uma vez: "e o que é discriminação"? Discriminar  quer dizer separar, isolar, marcar diferenças. Quando o preconceito deixa de ser só uma idéia e se transforma em ato, em ação, acontece a discriminação. Por exemplo: alguém está entrevistando dois candidatos a uma vaga. Não gosta de nenhum dos dois, porque um deles, branco, está mal vestido e de barba por fazer, e o outro é negro. No final, a vaga fica para o branco. Neste caso, o entrevistador sentiu preconceito contra os dois candidatos, mas praticou discriminação apenas contra o negro.

Infelizmente, as idéias preconceituosas sobre as diferenças raciais tiveram forte influência em algumas épocas da história da humanidade e deram origem a um dos mais terríveis crimes contra a dignidade humana: "o racismo".

Mas, o que é o "racismo"? É a idéia em nome da qual uma raça  se declara superior a outra e parte para dominá-la, sentido-se no direito de condená-la ao isolamento e até ao extermínio.

Foi em nome do racismo que Hitler, na década de 30, declarou a superioridade da raça branca na Alemanha nazista e condenou à morte 6 milhões de Judeus. Foi também o racismo que justificou a escravização de africanos em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

Faz muito pouco tempo que assistimos em 1994 o fim oficial do apartheid  na África do Sul. Esse regime racista, que começou em 1948, condenava a população negra, que era a grande maioria, a viver separada dos brancos, a não participar da vida política e a não possuir propriedades. O poder e os privilégios eram todos da minoria branca. A luta contra o apartheid foi longa e intensa e teve em Nelson Mandela o seu principal líder.

Em nome do racismo, a violência e a crueldade foram e ainda são praticadas contra pessoas e grupos, como se nada houvesse de desumano nesse comportamento.A consciência de que o preconceito é uma coisa reprovável e até vergonhosa vem aumentando. Por isso, ninguém confessa que é preconceituoso, fazendo parecer que é só uma questão de preferência: "Eu não tenho preconceito, mas prefiro que minha filha se case com um branco" (TREVISAN, 1999).

O preconceito e a discriminação estão mais presentes e são mais perigosos do que a gente pensa. As imagens negativas vão sendo criadas, vão se espalhando e se transformam em marcas. Tal grupo é "burro", outro é "violento", outro é "arruaceiro". A televisão, as revistas e o cinema repetem essas imagens e influenciam a opinião das pessoas. Nas escolas, há professores que também alimentam essas imagens, auxiliados por livros didáticos que carregam várias idéias preconceituosas em suas páginas.

As próprias pessoas que pertencem aos grupos vítimas de preconceito e discriminação podem se sentir diminuídas e desvalorizadas. Costuma-se dizer que elas estão com "baixa auto-estima". Isto é, a pessoa não consegue gostar de si, apreciar a cultura de seu grupo, sentir-se com força para lutar por seus direitos, expressar suas opiniões e buscar a realização de seus direitos.

Outro aspecto importante: é no ambiente de trabalho que os efeitos do preconceito mais aparecem. Nele, pessoas diferentes têm um contato mais próximo e permanente, podendo surgir situação e reações entre essas mesmas pessoas, fazendo com que umas passem a discriminar as outras em função da cor, do modo de pensar ou agir, da religião, da condição física etc. (ROSÁLIA,1999).

Qual é a situação racial no Brasil?

Nós já vimos quais são os pensamentos e os sentimentos que fazem surgir o preconceito, a discriminação, o racismo. Mas como será que eles se manifestam no Brasil, principalmente nas relações sociais? Qual é, por exemplo, a verdadeira situação do negro brasileiro? Existe preconceito racial, racismo, entre nós?

Para compreender, o momento atual, precisamos, antes de tudo, relembrar um pouco da história do Brasil e, dentro dela, o papel do povo negro. Isto é importante, pois muitos dos preconceitos raciais têm origem no desconhecimento dos verdadeiros fatos que aconteceram desde que os primeiros africanos chegaram aqui.

Infelizmente, a grande maioria de nossos livros de história não mostram toda a verdade, falam muito nos brancos que realizaram coisas importantes, como Cabral, Tiradentes, mas praticamente ignoram os líderes negros, a participação do povo negro na construção do país e a heróica luta que enfrentaram, durante séculos, contra a escravidão e a opressão (ROSÁLIA, 1990).

Felizmente existem muitos estudiosos preocupados em quebrar o silêncio e recontar essa história, mesmo enfrentando dificuldades como o desaparecimento de documentos e os poucos registros das marcas da escravidão.

Relembrando a história

Até 1530, os portugueses se dedicaram a explorar o pau-brasil, a madeira que eles tiraram daqui e levaram para a Europa. Por essa época, a economia de Portugal começou a entrar em crise. Para atender suas necessidades econômicas e para evitar que outras nações viessem explorar as riquezas da nova terra, a Coroa portuguesa decidiu transformar o Brasil em colônia. O Brasil foi loteado, doado, e tudo que aqui se produziu pertencia exclusivamente a Portugal.

Para justificar os gastos com a colonização, era preciso desenvolver uma atividade que garantisse uma boa renda e tivesse aceitação no mercado Europeu. A escolha foi o cultivo da cana e produção de açúcar. A necessidade de mão-de-obra aumentou. O trabalho livre era evitado pelos colonizadores, com receio de que trabalhadores assalariados resolvessem se apossar de pedaços de terra, que existia em abundância. A mesma terra que está ainda hoje concentrada em poucas mãos e falta para muitos brasileiros no campo. A escravização de indígenas era complicada.

Sem brancos e sem índios para enfrentar o batente, uma nova opção foi assumida pela Coroa portuguesa: usar o tráfico de escravos africanos e trazer para a colônia essa mão-de-obra. Desde 1530 havia uns poucos escravos negros no Brasil, mas foi em 1550 que desembarcou em Salvador a primeira grande quantidade de africanos. Calcula-se que dessa data  até 1850 mais de 3 milhões de escravos africanos foram trazidos para o Brasil.

Desde quando pisavam nos chamados navios negreiros, os africanos escravizados passavam a enfrentar péssimas condições. Sujeitos a castigos físicos, sem alimentação, em precárias condições de higiene, 100 negros embarcados 40 morriam durante a viagem. No tráfico, suas vidas eram trocadas por armas, tecidos de algodão, aguardente, sal.

Os laços de família e tribais não eram respeitados no momento de distribuir os escravos entre seus novos donos. Nos engenhos de açúcar, amontoavam-se nas senzalas úmidas, enfrentavam um trabalho exaustivo, por qualquer motivo eram açoitados. Para se ter uma idéia, mesmo um negro em ótimas condições físicas não sobrevivia mais do que 10 anos depois que era submetido ao trabalho escravo.

E assim foi por quase 400 anos: nos engenhos de açúcar, nas fazendas de café, nas minas de ouro, no tabaco, no algodão, era sempre o trabalho do negro escravo produzindo riquezas sem nenhum retorno (AGOSTINI, 1998).

A história do Brasil, do modo como é ensinada nas escolas, quer dar a entender que o período da escravidão não foi assim tão ruim: os senhores de escravos eram bonzinhos, os negros aceitavam pacificamente sua situação, reinava uma certa harmonia entre a casa grande e a senzala. Esse modo de pensar levou um conhecido estudioso brasileiro, Gilberto Freyre, a defender a idéia de que no Brasil sempre existiu uma democracia racial, já que os brasileiros são o resultado da mistura de três raças: o branco, o negro e o índio. Essa versão da história não é verdadeira, por vários motivos, senão vejamos; 1. a escravidão por si só já é uma violência contra o ser humano, não havendo a menor possibilidade de ser considerada como um sistema suave. 2.os escravos eram tratados com crueldade, os castigos corporais eram rotina e nada materialmente ou como sentimento, vinha dos seus senhores que pudesse ser chamado de bondade ou gesto humanitário.3. os negros nunca aceiram passivamente a escravidão, e desde o início tentaram livrar-se dela da única forma possível: por meio das fugas e rebeliões (SOUZA,1986).

A reação dos negros à escravidão acontecia de modo individual e coletivo. A resposta dos senhores a qualquer ato de rebeldia era sempre terrível: tortura, tronco, açoite, morte.A maior ameaça ao poderio de donos de escravos e à coroa portuguesa eram as fugas em massa para os Quilombos, onde ex-escravos fugidos das fazendas e das cidades reorganizavam suas vidas de maneira semelhante como era na África.

Os Quilombos se espalharam por quase todo território brasileiro. Seu ponto alto era a organização, tanto no trabalho coletivo na agricultura, que garantia a manutenção dos quilombolas (assim era chamados seus habitantes), como nas atividades militares. Existiram mais de 100 quilombos, que acolheram também índios e brancos pobres, tão oprimidos quanto os negros.

Conclusão

Por tudo que vimos, fica evidente que, embora existam leis para combater a discriminação, estas não são suficientes. É necessário ampliar o conhecimento e a consciência das pessoas, de forma a criar condições que reduzam os efeitos negativos do racismo.

Atualmente, como as oportunidades de trabalho são escassas, a competição aumenta e, consequentemente, também a discriminação. Os grupos menos favorecidos ou "diferentes" têm ainda menos chance de acesso às oportunidades, em especial os que estão nas classes mais pobres da população.

Precisamos nos lembrar de que a população negra não é a única excluída na nossa sociedade. Há milhões de brasileiros na pobreza, negros, brancos, índios, todos humanos e merecedores de uma vida melhor.

Precisamos conscientizar todos os homens, mulheres, jovens, de todas as raças e religiões, para os prejuízos que o racismo causa ao Brasil. Precisamos denunciar. O silêncio fortalece o preconceito e o racismo. O movimento negro, que agrupa sindicalistas, trabalhadores rurais, pesquisadores, estudantes, em suas organizações tem sido incansáveis na luta contra o racismo (LIBÂNEO,1999).

Quando os oprimidos e marginalizados negros, brancos, amarelos exigirem e conquistarem sua plena cidadania, teremos a oportunidade de transformar nosso Brasil em uma nação mais justa, democrática, embelezada pelas diferentes manifestações culturais dos seus diversos grupos étnicos, habitada por uma gente trabalhadora, criativa saudável e feliz.

Animais-vos...que está por chegar
o tempo feliz da nossa liberdade,
o tempo em que seremos todos irmãos,
o tempo em que seremos todos iguais.
(frase escrita nos muros e paredes de Salvador, anunciando a Conjuração)


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REFERÊNCIAS:
AGOSTINI , C.João. Brasileiro, sim senhor. São Paulo: Editora Moderna, 1998.

BENTO , S.A. Maria. Cidadania em preto e branco. São Paulo: Editora Ática, 1990.

LIBÂNEO, J.B. Ideologia e cidadania. São Paulo. Editora Moderna,1999.

MARTINEZ , Paulo. Direito de cidadania - Um lugar ao sol. São Paulo: Editora Scipione,1999.

MARTINS , Sergio. Direito e legislação anti-racista. Cadernos do Ceap, 1999.

ROSÁLIA , Lemos Oliveira de. O negro na Educação e no livro didático: como trabalhar alternativas. Como. Cadernos do CEAP; 1999.

SOUZA, Herculano, Ari. Os Direitos Humanos. São Paulo: Editora do Brasil S/A, 1986.

TREVISAN , Leonardo. Abolição - Um suave jogo político ? São Paulo: Editora Moderna, 1999.
 
 
* Otaviano Afonso Pereira, mestre em Educação e professor na Estácio de Sá/ES.